Reforma trabalhista não acabou com o direito às horas in itinere
Por Renato da Fonseca Janon e Cynthia Gallera Garcia
Teria a reforma trabalhista acabado com o direito às horas in itinere? A pergunta ganha extrema relevância quando lembramos que, com frequência, sobretudo no meio rural, os trabalhadores dedicam várias horas do seu dia no deslocamento da residência para o trabalho (há casos em que esse período chega a ser de mais de quatro horas diárias), sendo que, em regra, o empregador fornece a condução em interesse próprio, na medida em que, se não fosse o transporte fornecido pela empresa, não haveria mão de obra disponível para laborar em locais ermos ou de difícil acesso e a produção ficaria prejudicada. Em muitos casos, nem mesmo haveria outra forma de o empregado se deslocar para o trabalho, como, por exemplo, os trabalhadores rurícolas que, em cada dia, trabalham em uma fazenda diferente, a centenas de quilômetros de distância de suas residências. Todo esse tempo gasto no transporte, à disposição do empregador, deve ser desprezado?
A lei 13.467/2017, com o aparente propósito de suprimir o pagamento desse período de percurso, mudou a redação do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT, passando a determinar que: “o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador”.
Portanto, à primeira vista, em uma exegese açodada e literal, a conclusão óbvia seria a de que não existe mais direito às horas in itinere em nenhuma hipótese, pouco importando a distância até o local de trabalho ou a quantidade de horas despendidas nesse deslocamento.
Todavia, em uma análise sistemática, veremos que não é bem assim e que há inúmeros outros fundamentos para se reconhecer o tempo de transporte como tempo à disposição do empregador, superando a literalidade do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT, norma que ficou isolada — e descontextualizada — dentro do sistema normativo que regula a duração da jornada de trabalho e sua respectiva retribuição.
Comecemos pelo princípio, com perdão do pleonasmo, por uma questão de método de interpretação. O atual artigo 4º da CLT, em seu caput, expressamente estatui que “considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”.
No parágrafo 2º, o artigo 4º da CLT excepciona as hipóteses em que o tempo gasto pelo empregado não deve ser considerado como à disposição do empregador, enumerando-as de forma taxativa: “I – práticas religiosas; II – descanso; III – lazer; IV – estudo; V – alimentação; VI – atividades de relacionamento social; VII – higiene pessoal; e VIII – troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa”.
Como se vê, nesse rol de exceções não há qualquer menção ao tempo gasto com transporte ou deslocamento da residência para o trabalho, de modo que temos aí a primeira contradição e incompatibilidade sistêmica, na medida em que o artigo 4º da CLT (norma que estabelece uma regra geral) não dialoga com o artigo 58, parágrafo 2º da CLT (norma específica e mais restrita). Logo, se fôssemos aplicar a mesma técnica de exegese gramatical daqueles que defendem a aplicação literal do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT, poderíamos sustentar que o artigo 4 da CLT, ao não excluir o tempo gasto com transporte em seu parágrafo 2º, está reconhecendo que o período de deslocamento integra o contrato de trabalho e deve ser considerado como à disposição do empregador, conforme diz o seu caput. Em resumo, se não excluiu é porque integrou, ou seja, prevalece a regra geral quando não há exceção explícita — ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.
O ministro Maurício Godinho Delgado, em obra conjunta com Gabriela Novaes Delgado, obtempera que “a eliminação das horas in itinere do ordenamento jurídico não afeta, entretanto, o conceito de tempo à disposição no ambiente de trabalho do empregador e, por consequência, de duração do trabalho. Embora a má redação do novo texto do § 2º do art. 58 da CLT eventualmente induza à compreensão de que a jornada de trabalho somente se inicia no instante em que o trabalhador concretiza a efetiva ocupação do posto de trabalho dentro do estabelecimento empresarial, tal interpretação gramatical e literal conduziria ao absurdo – não podendo, desse modo, prevalecer”[1].
Convém enfatizar que os seis primeiros artigos da CLT (não por acaso integrantes do Título I, denominado de “Introdução”) definem os elementos essenciais do contrato de trabalho e fixam os parâmetros para a compreensão de todos os demais preceitos do Diploma Consolidado, estabelecendo, por exemplo, os conceitos de empregador (artigo 2º), empregado (artigo 3º), tempo à disposição (artigo 4º), igualdade salarial (artigo 5º) e local de trabalho (artigo 6º). Portanto, até mesmo em uma interpretação topológica (pelo lugar que a norma está inserida dentro de um determinado código), é inevitável concluir que o artigo 58, parágrafo 2º, da CLT jamais poderia contrariar o conceito elementar definido no 4º da CLT, que tem precedência estrutural.
Se já não fosse o bastante, há diversos outros preceitos incompatíveis com a nova redação do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT. O artigo 238, caput, da CLT ressalta que “será computado como de trabalho efetivo todo tempo em que o empregado estiver à disposição da estrada”. Por sua vez, o artigo 238, parágrafo 3º, da CLT preceitua que “§ 3º No caso das turmas de conservação da via permanente, o tempo efetivo do trabalho será contado desde a hora da saída da casa da turma até a hora em que cessar o serviço em qualquer ponto compreendido centro dos limites da respectiva turma. Quando o empregado trabalhar fora dos limites da sua turma, ser-lhe-á também computado como de trabalho efetivo o tempo gasto no percurso da volta a esses limites”.
O artigo 294 da CLT, que não foi revogado e disciplina o trabalho em minas de solo, vai além e também reconhece o direito desses trabalhadores ao período de deslocamento, inclusive dentro do próprio estabelecimento patronal, ao dizer que “o tempo despendido pelo empregado da boca da mina ao local do trabalho e vice-versa será computado para o efeito de pagamento do salário”.
Entrementes, não é só na legislação trabalhista que encontramos preceitos colidentes com o atual artigo 58, parágrafo 2º, CLT. Na legislação previdenciária, o artigo 21, inciso IV, “d”, da Lei 8.213/1991 (Lei de Benefícios da Previdência Social) prevê que os acidentes ocorridos no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado, serão considerados acidentes do trabalho por equiparação, de modo que, mais uma vez, vemos que o legislador optou por considerar que o período de deslocamento integra o contrato de trabalho, inclusive para fins de proteção acidentária.
Trata-se, aliás, de uma concepção enraizada no Direito Internacional. O artigo 3º, alínea “c”, da Convenção 155 da OIT define que “a expressão ‘local de trabalho’ abrange todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que comparecer, e que esteja sob o controle, direto ou indireto, do empregador”, lembrando que, conforme assentado no julgamento da Súmula Vinculante 25/STF, tratados internacionais sobre direitos humanos, quando incorporados pelo ordenamento jurídico brasileiro, gozam de status supralegal, estando, portanto, acima da lei ordinária. E o artigo XXIV, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, destaca que: “Todo homem tem direito ao repouso e ao lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho…”. Logo, o artigo 3º, ”c”, da Convenção 155 da OIT versa sobre um direito humano fundamental e, portanto, está acima da Lei 13.467/2017, constituindo norma hierarquicamente superior.
Outro fundamento relevante para se afastar a nova redação do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT reside no princípio constitucional da vedação do retrocesso social, que impede a supressão dos direitos sociais sem a correspondente contrapartida, como foi o caso da eliminação das horas in itinere pela lei da reforma trabalhista, em prejuízo exclusivo do trabalhador. Trata-se de corolário da estrutura principiológica consagrada no artigo 1º, inciso III, artigo 5º, parágrafos 1º e 2º, e no artigo 7º, caput, todos da Carta Magna, os quais atraem a incidência do artigo 26 do Pacto San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil pelo Decreto 678/92.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhecem que se trata de um princípio implícito na Constituição da República. De acordo com Lenio Streck, “neste ponto adquire fundamental importância a cláusula implícita de proibição de retrocesso social, que deve servir de piso hermenêutico para novas conquistas. Mais e além de todos os limites materiais, implícitos ou explícitos, esse princípio deve regular qualquer processo de reforma da constituição. Nenhuma emenda constitucional, por mais que formalmente lícita, pode ocasionar retrocesso social. Essa cláusula paira sobre o Estado Democrático de Direito como garantidora de conquistas. Ou seja, a Constituição, além de apontar para o futuro, assegura as conquistas já estabelecidas. Por ser um princípio, tem aplicação na totalidade do processo aplicativo do Direito”[2].
Importante ressaltar que a suprema corte já reconheceu, de forma expressa, que a vedação de retrocesso social se estende aos direitos trabalhistas. Tanto é assim que, em um julgamento no qual se discutia a recepção do artigo 384 da CLT após a Constituição de 1988, o ministro Celso de Mello voltou a defender a força supranormativa da cláusula de vedação do retrocesso, afirmando: “Como se sabe, o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive (….)”. Mais adiante, o decano sustentou que: “Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos”[3].
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, em acórdão que teve como relatora a ministra Kátia Magalhães Arruda, o TST reconheceu que o direito às horas in itinere está protegido pela garantia de vedação do retrocesso social, uma vez que a remuneração pelo tempo à disposição do empregador faz parte do mínimo existencial do trabalhador. Na fundamentação do voto condutor, ficou assentado que “o art.7º, caput, da CF/88 prevê o direito fundamental à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais, positivação do princípio da proteção (núcleo essencial do Direito do Trabalho), do qual é desdobramento o princípio do não retrocesso”:
(…) o art.7º. da Constituição Federal revela-se como uma centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um programa ascendente, sempre ascendente, de afirmação dos direitos fundamentais. Quando o caput do mencionado preceito constitucional enuncia que irá detalhar o conteúdo indisponível de uma relação de emprego, e de logo põe a salvo ‘outros direitos que visem à melhoria de sua condição social’, atende a um postulado imanente aos direitos fundamentais: a proibição de retrocesso[4].
No que se refere, especificamente, ao trabalho rural, há um outra questão fundamental a ser considerada: o artigo 7º, alínea “b”, da CLT ressalva, de forma expressa, que o diploma consolidado não se aplica ao rurícola, de modo que para este ainda prevalecem a Lei.5.889/73 e o Decreto 73.626/74, que não excluem o pagamento de horas in itinere. Extrai-se daí a ilação de que o artigo 58, parágrafo 2º, CLT jamais seria aplicável ao trabalhador rural, pois, na pior das hipóteses, esse preceito somente regularia o deslocamento do trabalhador urbano, conforme decidiu, recentemente, o TRT da 15ª Região[5].
Porém, mesmo no caso do trabalho urbano, decisão recente do TRT da 3ª Região permite inferir que as horas in itinere devem continuar sendo pagas naqueles contratos que já estavam em curso antes da reforma trabalhista, inclusive no período a partir de 11/11/2017 (quando entrou em vigor a Lei 13.467/2017), invocando-se, como raciocínio analógico, o entendimento que prevaleceu quando da interpretação da mudança na base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários, conforme Súmula 191, inciso III, do C.TST, haja vista se tratar de direito adquirido do trabalhador[6].
Nossa proposta, contudo, vai além, pois defendemos que, em se tratando de tempo à disposição do empregador, em uma interpretação sistemática e principiológica, as horas in itinere devem ser pagas para todos os trabalhadores, independentemente de terem sido contratados antes ou depois da Lei 13.467/2017.
Por conseguinte, concluímos que, após a reforma trabalhista, continuam sendo devidas horas in itinere a todo trabalhador, urbano ou rural, que: (1) labore em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular em horário compatível com sua jornada e (2) utilize condução fornecida pelo empregador, haja vista que a aplicação literal do artigo 58, parágrafo 2º, da CLT não se sustenta diante do princípio constitucional que veda o retrocesso social e dos artigos 4º, 238 e 294/CLT, artigo 21, IV, “d”, da Lei 8.213/91 e artigo 3º, “c”, da Convenção 155/OIT.
Fonte: consultor juridico